QUILOMBOS – Nasce uma nova escola de samba

Por Juarez Barros

Jornal do Brasil, Caderno B, página 10, 17 de dezembro de 1975.

 

 

            As escolas de samba cariocas agigantaram-se, deformaram-se à medida que se transformaram (ou pretenderam transformar-se) em shows para turistas.

            O tema é polêmico, tratado quase sempre em tom passional.  Deformação ou evolução?  Seria impossível o retorno à pureza, ao comunitarismo dos anos 30, quando essas escolas se consolidaram?  O sambista Candeia, liderando outros sambistas descontentes com a situação, prefere responder de modo objetivo.  E responde com a fundação de uma nova Escola de Samba, Quilombos, escola que terá sede em Rocha Miranda e irá para a avenida mostrando como era e como deve ser o samba.

 

            A rua Mapendi, em Jacarepaguá, é redonda e calma, emangueirada, rua vegetal, de quintais, casas nem ricas nem muito pobres.  Na varanda lateral de uma delas, um crioulo impõe a voz forte, de puxador de samba, sobre a marcação de um surdo, um pandeiro, dois tamborins, um agogô, um reco-reco, dois ganzás, sons que já se ouviam à distância, uns 200 metros antes.  Em volta, sentados na mureta, no chão em pé, umas 15 pessoas, variados tons de pele, variadas formas de vestir.  Cadê o dono da casa?

-- O Candeia saiu um instantinho.  Foi deixar um amigo dele.  Daqui a pouco o samba (...)[1], ou melhor, se interrompe.  De carro, Candeia (...).  Ao sair, deixara o pagode formado.  E voltava não para terminá-lo, mas para garantir sua continuidade, pelos tempos.  Aquela não era uma reunião improvisada nem mesmo chegava a ser um pagode no sentido sambístico.  Era a primeira manifestação de sua bateria.  E Candeia chega para o que também seria (...), quilombos, entidade purificadora (...) cultura popular carioca em sua manifestação mais expressiva.

 

            Naquela mesma casa, certa tarde de sábado, coisa de dois meses antes, Candeia – Antônio Candeia Filho – compositor de meia dúzia de sambas-enredos cantados na avenida, três LPs individuais, músicas nas vozes de dezenas de cantores, portelense hereditário, carregador de pedra e areia em carrinho de mão para a construção da sede da Portela (anterior ao Portelão), falava em tom de revolta, muito embora tranqüilo.  Um assunto já discutido, analisado, polêmico: o gigantismo da Escola de Samba, sua transformação em shows/ou a tentativa dessa transformação), a perda do espírito comunitário existente em suas origens, a perda do próprio controle das escolas de samba pelos sambistas.  Algo bem acima do que o simples “embranquecimento”, a simples “invasão da Zona Sul”, que só isso não explica e nem justifica a transformação das escolas de samba em fonte de enriquecimento de alguns, em base de prestígio social, político.  Coisa que alguns chamam evolução.  Não era um teórico, um sociólogo de fora analisando um fenômeno.  Era um sambista.  No meio da revolta, um sonho:

-- Se eu pudesse, se eu tivesse condição física, fundava uma escola de samba.  Uma escola para redimir toda essa gente que não aceita isso que está aí.

 

            “Sentado em trono de rei ou aqui nesta cadeira – de qualquer maneira, meu amor, eu canto”, já disse Candeia num samba.  E alguém comentou:

-- Você tem mais condição do que qualquer um, Candeia.

 

            O sambista não disse que sim nem que não.  Pensou, falou nas cores de sua escola – fantasia, o roxo, lilás, como cor base.  Roxo (...) Ouro também, talvez.  E Continuava o sonho:

-- Uma escola em que tudo fosse feito pelo povo.  As costureiras do lugar fazendo as fantasias.  Não ia ter esse negócio de figurinista de fora não.  As alegorias também, tudo de lá mesmo, escolhido lá.

 

            Ganharia o samba melhor, o mais bonito, e todos os compositores (...).

-- Uma competição sem gente de fora, sem bicão.  Desfile à antiga, com cordas (...).

 

            Lembrados os tempos heróicos da Portela, do Salgueiro, tempos comunitários, a escola dirigida pelos próprios sambistas, sem paternalismos de bicheiros, de políticos.  Lembrados os nomes de sambistas descontentes, dos que abandonaram a Avenida ao vê-la fechada, reservada aos turistas.

-- Ia ser uma escola muito bonita.  Sei lá, é uma idéia.  Fica a idéia.

 

            Passou-se.  Dias depois, um instante difícil, chocante na vida de Candeia, a perda de um parente próximo, muito próximo, gente de sangue, do coração.  Aquele telefonema de solidariedade, também difícil.  O que se vai dizer?  O que se pode dizer numa hora dessas?  Dizer que a gente está presente, não está alheio.  Do outro lado, a voz calma, firme:

-- A gente sabe que isso pode acontecer a qualquer um, sabe que acontece.  Mas é duro de enfrentar; é muito duro.  Agora, eu tenho uma coisa pra lhe dizer: aquela escola samba não é mais só idéia não.  Vai sair mesmo.  Arranjamos o terreno e vamos fazer.  É lá em Rocha Miranda, na subida do morro.  E a gente quer fazer com o pessoal de lá mesmo, diretoria de lá.  Talvez não dê para desfilar neste carnaval.  Mas a gente já vai preparando.  E é isso, meu irmão, enquanto se luta se samba também.

 

            Grêmio Recreativo de Arte Negra e Samba Quilombos.  No nome, sugestão de resistência, jamais de nostalgia.  Não se trata de uma simples “volta às raízes”, mas de afirmação dessas raízes, já que não se pode considerar evolução – quando se aprecia o crescimento, a transformação das escolas – um processo que alija o próprio sambista.

 

            Na primeira reunião oficial dos Quilombos, isso fica muito claro.  E um dos presentes lembra:

-- Às vezes o sambista nem tem dinheiro para entrar no ensaio.  Quem pode pagar, entra, toma conta da quadra.  O sambista fica lá fora, só escutando.

 

             A um canto, os instrumentos, os primeiros doados à nova escola.  Os Quilombos aceitam doações:

-- Seria mais fácil pedir para um político, arranjar uma bateria.  Mas assim é melhor, cada um contribuindo como pode (...).

 

             A diretoria em torno de Candeia, presidente vitalício do Conselho Deliberativo.  Conselho do qual sairão todas as outras diretorias, forma de evitar deturpações no sentido do trabalho.  E ele apresenta os outros diretores.  O presidente administrativo é Rui, gente mesmo de lá, da rua Pinhará, em Rocha Miranda.

-- Na presidência, tem que ser nego de lá, que conhece todo mundo, controla o pessoal.

 

            Rui, mulato novo, todo de preto, corrente ao pescoço, já adquiriu porte presidencial.  Primeiro vice, Vanderlei, crioulo fino, um Nelson Sargento dez anos mais moço, de pouco falar, mas de muito dizer, objetivo, vocação de organizador, não fosse ele o fundador da Ala dos Impossíveis, da Portela, presidente da Ala Amigos do Samba, da mesma escola, fundador e presidente do Bloco Rosa de Ouro[2], de Osvaldo Cruz.

-- Eu fundei esse bloco com o mesmo sentido dos Quilombos.  Agora, uma coisa eu quero deixar clara: eu sou portelense, de coração, não vou deixar nunca de ser portelense.

 

            Candeia, seu compadre, concorda e completa:

-- Ninguém vai deixar as suas escolas.  Eu também sou Portela, não vou deixar de ser.  Eu praticamente nasci dentro da escola.  E uma coisa fica bem clara: Quilombos, mais do que uma Escola de Samba, será um escola de sambistas, um modelo para outras escolas, uma referência.

 

            Segundo vice, Edgard, da Boca do Mato, dos tempos em que Martinho da Vila era só Martinho, versando por lá.  Tesoureiros, Zezinho e Algrael; Secretários, Orlando e Márcia; Relações Públicas, Jorge Coutinho das famosas rodas de samba do Opinião, ex-integrante dos Unidos da Capela, e Denival; Diretor Social, Paulinho; Diretor de Patrimônio, Joel; Irany e Jacira no Departamento Feminino.

            A Direção de Harmonia e de Bateria são o meio de campo de uma Escola de Samba.  Sem comando firme, a escola atravessa, se perde, bateria para um lado, às vezes para o outro, pés procurando inutilmente o reencontro com o ritmo.  Nessa parte, Quilombos está igualmente segura.  Como Diretor de Harmonia, Dílson, ex-diretor da Portela, um dos muitos que deixou o samba, desgostoso, e mais Wilson Moreira (“o mel, mamão com açúcar, eu também que encontrar um pedacinho do céu”), dos albores da Mocidade Independente de Padre Miguel, hoje na Portela.  Como Diretor de Bateria, Doutor, no alto da hierarquia dos ritmistas do samba, Mauro, Edson e Neizinho no Conselho Fiscal e Jurídico.

 

            Ainda como fundadores Flavinho do Unidos do Uraiti (...) outro portelense desgostoso; Eliezer, garçom do Bola Preta.

            (...) radicalismos.  A limpeza do terreno, por exemplo.  Impossível fazê-la apenas com o carrinho de mão, marreta, picareta.  Não iria terminar nunca.  Precisa de máquinas, alguém importante já se comprometeu em arranjar uma.  Um dos diretores, porém, adverte:

 

            --- O sujeito tem que ser bala de pólvora.  Não pode furar.  Prometeu, tem que cumprir.

 

            E quem fizer pela escola terá a sua gratidão, e jamais direito a faixas no estilo “estamos com fulano de tal”, etc.

 

            No começo, nenhuma preocupação de filiar-se a entidades, de participar de desfiles oficiais.  Quilombos exibirá seus sambas, suas pastoras, seus sambistas em lilás, ouro e branco descompromissadamente na avenida, à tarde, talvez com mais de um samba, talvez com vários.

 

            --- Por que um samba só?  Ficar uma hora cantando a mesma coisa? – pergunta Candeia. --- Pode ser na antiga, a gente mudando o samba no meio do desfile.

Em Rocha Miranda, a base comunitária da escola.  Mas quem é de samba pode vir.  Já são convidados naturais, por exemplo, os integrantes da Velha Guarda da Portela – Caetano, Alberto Lonato, Chico Santana, Manacéa, Aniceto, Monarco, Mijinha, quando sair do hospital, será bem recebido por lá e a Quilombos talvez faça por ele o que a Portela até hoje não fez por um de seus maiores compositores; Anescar, Geraldo Babão, históricos salgueirenses, podem também vestir as cores lilás-branco-ouro pensando no vermelho e branco dos tempos em que o Salgueiro ainda era no morro. Há lugar para os sambistas (...) ajuda, incentiva.

 

            A Portela, em Osvaldo Cruz, segundo a tradição, nasceu à sombra de uma jaqueira, que já virou samba de Zé Kéti.  Um dia sentiram ou acharam que o crescimento físico da escola exigia o sacrifício da jaqueira.  E a (...) árvore foi sacrificada.  Por coincidência começava aí o crescimento (...) samba, o distanciamento entre a associação e a comunidade.  A Portela saiu de seu local (...).  O Salgueiro abandonaria o morro, transferiria seus ensaios para a Rua Maxwell, em Vila Isabel, do morro em que nasceu, da fusão de outras escolas, conservaria o nome.  A Mangueira enraizada ao pé do morro resiste como pode, e este ano já aderiu ao zuzuqueísmo salgueirense (“pega no ganzê, pega no ganzá”), trocando sua tradicional linha de sambas, com “relicários” e “maravilhas triunfais”, por um ô-ba-ba, oba-oba-babá (a análise sociológica desse fenômeno é coisa para um tratado, um ensaio).

 

            No terreno da sede da Quilombos há uma palmeira.  E os fundadores da escola pretendem conservá-la como símbolo, assentamento da escola, do seu espírito e seus propósitos.

 

            Data oficial de fundação do Grêmio Recreativo Arte Negra e Samba Quilombos: 8 de dezembro de 1975, dia de Nossa Senhora da Conceição, sob cuja invocação nasce a escola.

 

            ---Ora-ai-iê-eeo.


 

[1] Os trechos entre parênteses indicam danos no texto original.

[2] Foi fundado como Grêmio Recreativo Bloco Carnavalesco Rosa de Ouro em 17/05/1970, na rua Coelho Lisboa no. 201, em Osvaldo Cruz, com as cores azul-rei, ouro e branco.  Transformou-se em Grêmio Recreativo Escola de Samba Rosa de Ouro em 2004 e participou do desfile de avaliação no Grupo de Acesso E, na Estrada Intendente Magalhães no bairro do Campinho, junto com a também estreante escola de samba Amarelinho, em 2005, quando ambas foram aprovadas para disputarem o carnaval em 2006.  O GRES Rosa de Ouro obteve o 1º. Lugar e ascendeu ao Grupo de Acesso D, em 2007.