Os holofotes da cidade

  Onde a vida brilhava mais intensamente

  Durante mais de um século, as luzes da cidade estiveram apontadas para as proximidades da Rua do Ouvidor. Quem hoje passa pela estreita rua, típica do século XIX, não imagina que ela abrigava os mais chiques e importantes estabelecimentos culturais da cidade. Francisco Serrador conseguiu transferir para a Cinelândia o glamour secular que antes envolvia a Rua do Ouvidor, levando para as suas redondezas os principais cafés e confeitarias da cidade.

 

 

 

O brilho dos painéis da Cinelândia iluminam a cidade

    Integrada aos símbolos culturais republicanos da época de Pereira Passos, como o Teatro Municipal, o Museu Nacional de Belas Artes e a Biblioteca Nacional, os empreendimentos de Serrador se transformaram no coração cultural da cidade.

 

 

  Grandes eventos e manifestações políticas se utilizaram da visibilidade da Cinelândia, que se tornou o palco favorito para as principais festas e reivindicações cariocas. Tudo na Cinelândia ganhava outra dimensão, crescia em importância. A Cinelândia foi o holofote do Rio, projetando para o mundo as vozes da cidade. Iluminava o jeito carioca de ser, espalhando para o restante do país a cultura da Cidade Maravilhosa.

 A agitação da Cinelândia

   

 

  Palco nobre do carnaval

  Desde a inauguração da Avenida Rio Branco, Pereira Passos imaginou desfiles de carros enfeitados com flores para abrilhantar o carnaval em sua grande obra. Era um carnaval europeu, como européia também era a diretriz que orientava seus planos para a avenida.

 

  Anos mais tarde, na Cinelândia, formou-se o palco nobre do carnaval carioca. Os Ranchos e Grandes Sociedades tiveram ali seus momentos de glória, entrando para a história das manifestações populares do Rio de Janeiro.

 

  

  Os animados corsos e os cordões também brilhavam sob as luzes da Cinelândia. Em 1950, o Cordão do Bola Preta se transferiu para sua sede atual, na esquina das ruas Evaristo da Veiga e Treze de Maio, no antigo Largo da Mãe do Bispo. Em todos os sábados de carnaval o cordão arrasta multidões pelas ruas da região, tradição que se mantém viva.

Um corso diante do Teatro Municipal

 

 

    No Municipal, o baile de gala atraía a atenção de todos. Era o baile de quem buscava um carnaval mais tranqüilo, com mais requinte, longe da agitação que marcava as ruas. Lindas fantasias, concursos memoráveis. O baile do Municipal, ponto de encontro da alta sociedade da época,  embalou o imaginário de vários cariocas.

  As escolas de samba, surgidas no início da década de 30, na Praça XI, sempre almejaram chegar ao palco nobre. Só conseguiram na década de 50, quando sua popularidade  já as credenciava para brilharem na Cinelândia.

  Enquanto o povo se aglomerava na Praça Floriano, a comissão julgadora ficava nas escadarias da Biblioteca Nacional. Quando as principais escolas passavam, a elite carioca, que curtia os famosos bailes do Municipal, aglomerava-se nas janelas para ver os desfiles.

  Em muitos carnavais da Cinelândia, a Portela sagrou-se vencedora. Carnavais memoráveis como o tetracampeonato conquistado entre 1957 e 1960, justamente os 4 primeiros desfiles no tão cobiçado palco nobre. Voltou a sagrar-se vencedora sob os holofotes da Cinelândia em 1962, no último desfile realizado no local.

  Nos anos em que desfilaram na Cinelândia, as escolas de samba se consolidaram definitivamente como a principal atração do carnaval carioca, ganhando mais popularidade e fama. Dos 6 carnavais realizados na Avenida Rio Branco, que tinham a apoteose na Cinelândia, 5 foram vencidos pela Portela. As escolas deixaram a região para ocuparem um palco maior. O brilho da Cinelândia, entretanto, já estava definitivamente incorporado às escolas.

 

   

   

Símbolo do Cordão do Bola Preta

  Gente alegre, irreverente, o carnaval carioca em sua essência original. Os carnavais da Cinelândia são hoje a resistência de um tempo feliz, saudade presente de uma época em que, nas calçadas da Floriano, a alegria surgia com as chuvas de confetes e serpentinas.

  Palco das manifestações políticas
  Os holofotes da Cinelândia não iluminaram apenas os eventos culturais da cidade; também sempre estiveram apontados para os movimentos e manifestações políticas de envergadura nacional. Bastava estar na Cinelândia para estar politizado. Nenhum outro lugar no país conseguiu concentrar tão intensa atmosfera política, desde os discursos de anônimos até as grandes manifestações, passando pelos acalorados e intermináveis debates sobre os destinos da nação.

  A Cinelândia foi, e de certa forma ainda é, uma espécie de bastião da democracia brasileira, e por isso foi vítima de  governos autoritários que negavam ao povo o direito de expressão. Calando as vozes da Cinelândia, amordaçavam-se idéias e esperanças. Mas a Cinelândia sempre resistiu. Seu grito, mesmo que abafado, jamais se calou, encontrando ressonância em cada recanto do país.

 

 

 

  Resistência à ditadura

  A vocação para a democracia está realmente enraizada no local. Entre os anos de 1924 e 1927, a Biblioteca Nacional abrigou a Câmara dos Deputados. Entre os anos de 1925 e 1960, o Palácio Monroe sediou o Senado Federal. A Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro também tem sede no local, e desde 1922 ocupa o belo Palácio Pedro Ernesto, popularmente conhecido como Gaiola de ouro.

 

 

  Em 1930, quando Vargas assumiu o poder, ficou famoso o gesto dos gaúchos de amarrar seus cavalos no obelisco, gesto simbólico para expressar o domínio sobre o restante do país. Anos mais tarde, no embarque dos pracinhas para a Segunda Guerra Mundial, foi sob as luzes da Cinelândia que os soldados brasileiros desfilaram, sob os olhares orgulhosos do próprio Vargas.

Os gaúchos diante do obelisco

   

  Na época da ditadura militar, a Passeata dos "Cem Mil". Nas lutas pelas diretas, um grandioso comício. No impeachment de Collor, o protesto alegre dos caras-pintadas. Ainda hoje, a Cinelândia é o palanque preferido dos candidatos nos anos eleitorais.

 
   

Uma das muitas manifestações políticas diante do palácio Pedro Ernesto

 

  O adeus ao símbolo da democracia

  Durante 70 anos, o Palácio Monroe esteve presente na vida carioca. Palácio de exposições, conferências, arquitetura premiada internacionalmente,  tudo isso fazia parte do orgulho da cidade. Antiga sede da Câmara dos Deputados e do Senado Federal,  o palácio tinha uma grande identificação com o regime democrático no Brasil, símbolo do poder legislativo, tão perseguido nas épocas de autoritarismo.

 

  Essa relação com os símbolos do regime democrático é uma das explicações encontradas por quem procura entender os motivos que levaram à  demolição do Monroe, talvez o maior crime ao patrimônio cultural do Rio de Janeiro. Em plena ditadura, esse símbolo da democracia precisava ser destruído, como se fosse possível destruir também os ideais de liberdade da população brasileira.

 

 

 

 Os famosos Leões do Monroe sendo retirados

   A justificativa oficial foi a construção do metrô. As estruturas do Monroe estariam no caminho traçado para a construção dos trilhos do metropolitano carioca. Contudo, os protestos da sociedade civil fizeram a companhia que executava as obras  refazer o projeto, criando uma curva logo após a estação Cinelândia.

 

  Uma outra justificativa está em antigas rivalidades existentes entre o general Ernesto Geisel, então presidente da república, e responsável pela ordem de demolição, e o também general Souza Aguiar, arquiteto responsável pelo premiado projeto do Monroe. Especula-se que Geisel, por motivo de vingança, tenha se aproveitado para destruir a principal obra de seu antigo desafeto.

A demolição de um dos símbolos da Cinelândia

 

 

   Contudo, de nada adianta procurarmos explicações, pois nada justifica tal agressão ao patrimônio arquitetônico e cultural da cidade e do País. Em seu local, surgiu uma praça, sendo transferido o maior chafariz da cidade.

  Fundido no ano de 1861, em Viena, o hoje chamado chafariz do Monroe chegou ao Brasil em 1878, sendo instalado primeiramente na Praça XV. Por lá permaneceu por mais de 80 anos, até que as obras para a construção da Avenida Perimetral obrigassem sua transferência para a Praça da Bandeira. Quando o Monroe foi demolido, passou a enfeitar a nova praça da cidade.

 

 

 

  O chafariz do Monroe

Hoje, o chafariz está desmontado e sendo restaurado em um depósito da prefeitura. A Praça Mahatma Gandhi encontra-se cercada por tapumes. A prefeitura está construindo uma garagem subterrânea no local.

 

  Eterna estação da boemia

  Parte o trem da história. Atravessa os trilhos do tempo rumo ao imaginário do povo.  Na plataforma da saudade, vejo uma pequena ermida. Vejo emergir símbolos sagrados: um grande convento, um seminário e até a folclórica mãe de um bispo. Escuto no burburinho das pessoas histórias e estórias. Muitas eu já tinha ouvido. Mesmo distante, reconheço alguma coisa naquela local. Aquela gente, aquele povo, tudo aquilo é familiar, como se fizesse parte de mim,  latente em minha personalidade.

   

   

Estação Cinelândia

        Vejo casas destruídas, o envelhecido convento caindo, uma imensa avenida surgindo. Vejo imponentes construções sendo erguidas, pessoas elegantes passando, antigos automóveis enfeitados circulando. Vejo um morro desaparecendo, o mar ficar distante, novos prédios crescendo com o baixar da poeira.

      Vejo uma cidade de brinquedo surgir de um sonho. Vejo luzes se acenderem. Painéis luminosos piscando freneticamente, escrevendo nomes de astros e estrelas nos letreiros, refletindo nas calçadas, nos olhares espantados das pessoas, no glamour que cerca aquele local

      E o trem segue seu destino. Percorre caminhos que conheço e desconheço ao mesmo tempo, como se fosse possível. Estranha sensação. Os olhos desconhecem, mas o coração sente e pulsa forte com aquele movimento. É parte de mim que está ali, agora tenho certeza.

     E passa alegria, passam carnavais, escolas de samba, cordões. Passam diante de mim passeatas, manifestações, gente na rua pedindo liberdade. Passa a vida e a história do Brasil diante de meus olhos. Passa a minha própria vida. A vida de meus amigos, meus vizinhos, a vida da minha família, tudo aquilo faz parte das nossas vidas em comum, é parte da nossa consciência coletiva.

   O trem finalmente pára. Subo as escadas e vejo a boemia do Amarelinho, o povo que passa. Todo tipo de gente se misturando. A política, a literatura, as grandes peças teatrais, obras de arte, cinemas, teatros, tudo no mesmo espaço. Agora me encontrei. Passeei pelo imaginário que cerca o Brasil, o Rio de Janeiro, pelo imaginário do povo.

  Então, percebo que viajei sem sair do local. A Cinelândia hoje é um pouco de cada época que a antecedeu, e, ao mesmo tempo, é um pouco também de cada um nós. A Cinelândia é eterna. É nossa memória de dor e alegria que ali se encontram. Luzes que continuam acesas, iluminando e tornando mais viva nossa alma.

  Estamos na estação Cinelândia.


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Equipe Portela Web - 2002

 

Pesquisa e criação de texto: Fábio Pavão

Revisão ortográfica: Fabrício Soares