O sonho de Francisco Serrador
O locus da diversão e da cultura
O arrasamento do Morro do Castelo, projeto já discutido desde meados do século anterior, finalmente foi posto em prática em 1922. Parte do morro já tinha sido demolida por Pereira Passos para a construção de prédios como a Biblioteca Nacional e a Escola Nacional de Belas Artes, e a decadência da região venceu os últimos argumentos contrários, sobretudo da Igreja, que defendia a manutenção do morro por abrigar os símbolos tradicionais da cidade, como a primeira Igreja do Padroeiro e o colégio dos Jesuítas. De fato, o contraste entre a riqueza de prédios como o Teatro Municipal, Palácio Monroe, Biblioteca Nacional e do futuro Museu Nacional de Belas Artes diante da pobreza do Morro do Castelo era flagrante e visível.
A região onde estava o Morro do Castelo abrigou alguns dos principais pavilhões da exposição do centenário da independência, um grandioso evento que recebeu diversos países do mundo e todos os estados brasileiros, estendendo-se entre a Praia Vermelha e a Praça XV. |
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Os barracos no Morro do Castelo em contraste com a riqueza dos novos edifícios da Avenida Rio Branco |
Terminada a exposição, desmontados os pavilhões, a cidade ganhava uma imensa área para se expandir. Além da região do morro, as terras retiradas proporcionaram os primeiros aterros na região entre o Centro e a Zona Sul, vetor de desenvolvimento que seria explorado pelo chamado "Plano Agache", que estabelece a divisão entre as zonas Sul e Norte da cidade a partir da própria Avenida Rio Branco.
A Cinelândia surge e se desenvolve como área destinada ao lazer e ligada diretamente à Zona Sul, valendo-se de sua proximidade com a Avenida Beira-Mar e do desenvolvimento do vetor sul de ocupação da cidade. Mas Cinelândia ela ainda não era, a não ser nos sonhos do homem que comprou o terreno pertencente ao antigo convento demolido. Sonhos que tornaram os sonhos dos cariocas mais alegres e bonitos, trazendo para o Brasil um pouco do glamour da Broadway Americana. Sonhos que se fizeram realidade nos letreiros dos cinemas, que entraram em cena nos palcos dos teatros, sonho do empreendedor espanhol Francisco Serrador.
A criança e a cidade de brinquedo
Francisco Serrador Carbonell nasceu na cidade de Valência, em 8 de dezembro de 1872. Um dia, num belo sonho pueril, viu-se numa cidade de brinquedo, que alegrava e divertia as pessoas. Mas a realidade estava bem distante do sonho. Jovem humilde, desde os 12 anos ajudava a família vendendo peixe na feira.
Após a morte do pai, seguiu para Madrid em busca de uma oportunidade na capital. Quatro anos se passaram e as dificuldades de Valência ainda acompanhavam o rapaz. Em 1887, embarca num navio de terceira classe para tentar a sorte no Brasil, como muitos espanhóis faziam nesse período. Desembarcou em Santos e, depois de passar por mais dificuldades na cidade do litoral paulista, começa sua trajetória de sucesso em Curitiba. Começou vendendo peixe, como em Valência, depois frutas, e anos mais tarde já tinha seu próprio quiosque, que em pouco tempo se transformaria numa rede. Seus primeiros investimentos na área de entretenimento aconteceriam ainda na capital paranaense. Vislumbrou o cinema como a grande diversão do século que se iniciava, e, em 1904, compraria seu primeiro projetor, popularizando a novidade em seus quiosques. |
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Francisco Serrador |
Sua primeira companhia cinematográfica se chamou Richembur, e várias salas de cinema foram abertas no Paraná pelo empreendedor espanhol, agora já inteiramente dedicado à indústria do entretenimento.
De Curitiba, Serrador mudou-se para São Paulo em 1906, já como representante da Parthé francesa no Brasil. Difundiu a cultura do cinema na capital paulista, abrindo importantes salas, como o Bijou Théâtre, na Avenida São João. Mais tarde, estenderia seus investimentos para outras cidades do estado.
Em 1910, funda a Companhia Cinematográfica Brasileira e abre seu primeiro cinema em terras cariocas, uma sala na Avenida Visconde de Rio Branco. E em 1919, transfere suas empresas para a então capital da república, buscando realizar seus sonhos de infância.
O sonho de Serrador entra em cena
A área que hoje conhecemos como Cinelândia é o resultado da demolição do antigo Convento da Ajuda, que, após resistir às marretas de Pereira Passos, veio abaixo em 1911. No terreno, as companhias Light & Power e Brazil Railway pretendiam construir um luxuoso hotel de 10 andares. Contudo, esse projeto nunca saiu do papel e a área, na valorizada região, ficou alguns anos sem um destino definitivo.
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Em 1917, ainda morando em São Paulo, Serrador adquire parte do terreno. Ao lado, a câmara municipal, que teve seu primeiro prédio incendiado em 1919, começava a construir o palácio Pedro Ernesto, inaugurado em 1922. |
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O terreno do convento demolido em 1911 |
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Serrador planejou sua cidade encantada nas terras do antigo convento. Seu projeto inicial abrangia a construção de três teatros, quatro cinemas, dezessete amplas lojas, rinque de patinação, parque de diversões e um imenso terraço que se estabeleceria em toda a extensão dos prédios, sendo ocupado por bares e restaurantes. Extremamente ambicioso, não conseguiu ninguém para financiar tal ousadia. O projeto que saiu do papel, bem menos ousado, consistia em quatro cinemas, algumas lojas e salas de escritório. Entre os anos de 1920 a 1925 conseguiu capital para transformar em realidade seus projetos.
O quarteirão Serrador aos poucos começava a sair do papel. Em 23 de abril de 1925, o Capitólio, edifício com oito andares, era inaugurado. Seis meses depois, era a vez do Glória. Em 3 de abril de 1926, o Odeon e o Império, todos com seus respectivos cinemas. Pelas salas da Cinelândia, as últimas novidades produzidas em Hollywood chegavam ao Brasil. Junto com os filmes, novidades como o hot-dog, que Serrador trouxera da Broadway. |
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O sonho de Serrador começa a se tornar realidade |
Serrador revolucionou a vida carioca. Logo a cidade encantada do empreendedor espanhol se transformaria no centro da vida cultural do Rio. "Broadway brasileira", passarela por onde desfilaram os mais badalados artistas nacionais. Através das telas, surgiam as imagens dos principais astros internacionais. Estrelas que brilhavam nos reflexos dos letreiros luminosos. Gente feliz, que chegava de automóveis ou nos bondes que ligavam a região à zona sul.
O sonho pueril do menino era verdade. Seu mundo encantado já era real, distante das dificuldades da infância. As pessoas estavam felizes e sorrindo, como o jovem imaginou. A cidade de brinquedo de Serrador era conhecida pelo povo pelo nome de CINELÂNDIA.
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Sai de cena o
sonhador O falecimento de Serrador foi muito sentido pelo show business. As salas de cinema da Cinelândia fecharam as portas. Em sua homenagem, um busto foi inaugurado na Rio Branco. Uma pequena rua em seu quarteirão passou a ser conhecida pelo seu nome, e um edifício, construído por seu filho diante do Passeio Público, foi denominado "Edifício Francisco Serrador". Era o edifício do hotel que não poderia ter outro nome: Hotel Serrador. Tinha acabado de inaugurar seu último teatro e recebido há um ano a cidadania brasileira. Sua "cidade de brinquedo" já tinha vida própria. O sonhador saía de cena, mas a Cinelândia já estava definitivamente em cartaz na vida carioca.
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Busto de Francisco Serrador |
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Equipe Portela Web - 2002
Pesquisa e criação de texto: Fábio Pavão
Revisão ortográfica: Fabrício Soares