Nesta 1a. parte que disponibilizamos, Candeia e Paulinho da Viola discutem a importância da memória, falam de como surgiu o livro Escola de Samba: árvore que esqueceu a raiz, esclarecem aspectos sobre a polêmica em torno de qual foi o berço do samba (teria sido mesmo o Estácio o pioneiro?) e revelam um fato pouco conhecido: quem batizou a Portela, a quem foi consagrada e a importância cultural desse batismo.
SUPLEMENTO ESPECIAL CORREIO BRAZILIENSE
Domingo, 22 de janeiro de 1978.
As Escolas de Samba começaram a viver sua atual crise quando o sambista, para quem a Escola é uma casa, o único lugar onde ele pode se realizar totalmente, começou a perder a voz ativa, a iniciativa, sendo substituído por profissionais (senógrafos (sic), coreógrafos, etc,) de classe média, que interferiram num processo de cultura popular altamente característico. O repórter João Bosco Rabello passou 10 dias no Rio e trouxe 20 horas de material gravado, resumidos nesta edição. O papo foi na casa de Candeia, pras bandas de Jacarepaguá. Muita cerveja e uma madrugada toda em claro. Presentes Paulinho da Viola, Carlos Elias e um gravador num canto da sala, esquecido, mas ligado, registrando fielmente o que foi dito. Participando da conversa, o jornalista do Rio Ruy Fabiano e João Bosco Rabello do Correio Braziliense, este último com exclusividade sobre o material. No fim, um saldo positivo: algo que vira um importante documento do samba.
O MOTIVO
Transformadas em centro de atenções do carnaval carioca, as escolas de samba atravessam a mais séria crise de sua história, iniciada em agosto de 1928, com a fundação de Deixa Falar, por um grupo de sambistas do Estácio. O que inicialmente era apenas uma comunidade com a finalidade única de cantar sambas e brincar os carnavais, uma forma barata de diversão, acabou envolvida com o crescimento da cidade, pela indústria do turismo e suas conseqüentes implicações. Hoje, elas enfrentam este incômodo dilema: reagir contra a crescente descaracterização – que entre outras coisas colocou o sambista como um elemento decorativo dentro da escola – ou assumir de vez a carapuça de máquina de fazer dinheiro, que já provocou até o apelido de Escolas de Samba S/A.
Este ano, as costumeiras discussões que antecedem o carnaval foram precipitadas por um fato que acentuou mais ainda as correntes que disputam a liderança nas escolas: a escolha do samba-enredo da dupla Jair Amorim/Evaldo Gouveia para representar a Portela. Compositores de ligação recente e discutível com o universo das escolas de samba, (Evaldo Gouveia, por exemplo, declarou não gostar de carnaval e aproveitar os feriados para descansar em um afastado sítio) tiveram seu samba-enredo indicado pela direção da escola, apesar dos protestos gerais, dos mais expressivos compositores da escola. Mas a reação não foi menos violenta: Paulinho da Viola, Clara Nunes, Candeia e Monarco, nomes dos mais conhecidos da agremiação de Oswaldo Cruz, são apenas alguns dos que não se conformam com o fato e, a protesto não desfilarão este ano.
Porém, o recente episódio da Portela, reflete a gravidade da crise das escolas de samba. Para muitos, talvez a maioria, trata-se apenas de um acontecimento isolado, restrito ao âmbito da famosa escola de Madureira, quando a verdade é muito mais ampla e complexa. A verdade trata do esmagamento de uma cultura popular por elementos estranhos a essa cultura, uns na ambição desmedida de faturamento e outros ávidos de promoção pessoal e profissional. Esse processo não é de hoje que se vem desenrolando, pois, já em 1946, Cartola se afastava de Mangueira, escola que fundou, por um desentendimento com Hermes Rodrigues, que tentava fazer campanha eleitoral através da verde e rosa usando os sambistas e o prestígio da Mangueira. Muitos fatos antecederam esse processo massacrante de deformação dos valores culturais das comunidades de samba, mas ele será mais facilmente compreendido a partir de depoimentos valiosos como o do compositor Nelson Sargento, de uma memória invejável e um vasto currículo dentro do samba, além de uma participação as suas mais importantes na história da Mangueira. Mas Nelson é uma figura à parte, de uma riqueza interior belíssima e de uma força de espírito rara, qualidades que aliadas ao seu talento de compositor, pintor (de quadros e paredes) e convivências com Geraldo Pereira, Nelson Cavaquinho, Alfredo Português, Cartola e outros, lhe conferem uma indiscutível autoridade para falar do assunto.
Sobre Candeia, outra grande expressão do samba e que também participa dessa edição especial do CB, juntamente com Paulinho da Viola e Carlos Elias, há muito pouco o que falar, pois é figura que dispensa comentários. Filho da Portela, como o classificam alguns, Candeia há muito se bate numa luta desigual, tentando desmascarar a grande farsa armada em torno das escolas, pelas empresas de turismo, com a cumplicidade da própria Associação das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, cujo presidente Amaury Jório, defende literalmente o princípio de Escolas de Samba S/A Candeia abriu uma alternativa para os sambistas: o Grêmio Recreativo de Arte Negra Quilombo, que deve ser entendida exatamente como uma alternativa e não como uma antítese, no dizer de Paulinho da Viola. A propósito, Paulinho trava com Carlos Elias e Candeia, uma discussão sobre a situação das escolas de samba em nossos dias, num papo que começou por volta das dez horas da noite e só foi terminar pelas 6 da manhã seguinte, com muita cerveja e muita descontração. Esse papo está reproduzido na íntegra e, com exclusividade nesta edição e já pode ser considerado como um documento da maior importância, um registro que certamente deve ser levando em conta, principalmente pelos sambistas, alvos principais do trabalho desses compositores.
Outra figura que comparece com o seu esclarecimento de igual valor é o compositor Elton Medeiros, que a exemplo de Paulinho (por sinal seu parceiro) e de Candeia, Carlos Elias e Nelson Sargento, é também um estudioso do assunto e sempre preocupado em manter “acesa a chama” (isso é verso de Paulinho) de uma formação cultural de um povo, manifestada de diversas formas, mas que tem na escola de samba, talvez, a usa mais forte raiz.
Disso tudo, resumidamente, podemos contar com esclarecimentos preciosos, como o batismo da Portela por uma Yalorixá africana; a exploração do mito de Natal, por elementos invasores e principais responsáveis pela deturpação e inversão dos valores dessa cultura; a existência de uma frente interessada em apagar a memória até da história do país; a omissão de determinados setores oficiais com relação ao problema; a ausência do sambista na AESERJ, que deveria ser a entidade mais interessada na defesa de seus direitos, mas que exerce papel inteiramente oposto; a imposição do nome Portela, por um delegado de polícia e, uma série de outras denúncias que precisam chegar ao público e à consciência de cada um. O problema é mais grave na medida em que se observa, hoje, uma deformação a tal nível nas escolas de samba, que fica mesmo difícil, praticamente impossível, entender uma cultura de raiz e até vislumbrar os horizontes de suas verdades, seus hábitos e o comportamento interno das mais tradicionais agremiações do Rio de Janeiro.
A abordagem que deveria ser feita, o que deveria ser dito, e até opiniões sobre a edição deste caderno, bem como a sua validade ou não, tudo isso, foi longamente discutido por Paulinho da Viola, Candeia, Nélson Sargento e Elton Medeiros. Claro que o assunto não foi abordado em toda a sua profundidade, pois para isso, seria preciso muito mais que algumas páginas de um jornal: seria necessária uma longa e dedicada pesquisa, cujo resultado teria de ser publicado em um livro. Ma, dentro do espaço que tínhamos, procuramos colocar uma visão sincera do sambista com relação a todo este processo comercial.
Deve ser destacada ainda a importante presença do jornalista carioca Ruy Fabiano, que participou da noitada em casa de Candeia e do papo com Nélson Sargento, além de troca de sugestões e de idéias mantidas com ele, de fundamental importância para esta publicação.
As fotografias de todo este caderno foram feitas em épocas diferentes, parte delas na Avenida Presidente Vargas, com a participação do próprio Paulinho da Viola, no carnaval passado. Publicamos também, uma foto inédita tirada por Paulinho, na concentração da escola, focalizando Beki Klabin e um autêntico passista de escola de samba em primeiro plano. Outro documento inédito fornecido por Paulinho e Candeia, com exclusividade e publicado na íntegra, é um trabalho de André Motta Lima, Candeia, Paulinho e Cláudio Pinheiro, entregue em 1974 ao presidente da Portela, Carlinhos Maracanã, relatando os desejos dos membros da comunidade e tecendo críticas que consideraram construtivas para a escola.
João Bosco Rabello
O BATE-PAPO
O papo foi na casa de Candeia, pras bandas de Jacarepaguá. Muita cerveja e uma madrugada toda em claro. Presentes Paulinho, Carlos Elias e um gravador num canto da sala, esquecido, mas ligado, registrando fielmente o que foi dito. Participando da conversa, o jornalista do Rio Ruy Fabiano e João Bosco Rabello do Correio Braziliense, este último com exclusividade sobre o material. No fim, um saldo positivo: algo que vira um importante documento do samba.
Paulinho da Viola – Eu acho que as pessoas estão pegando aspectos isolados. O negócio não é esse. Nós temos de pegar aquilo que aconteceu. Primeiro nós temos de fazer um levantamento da história do samba. O que ele significou, como ele surgiu, porque/em que condições/quem eram as pessoas que faziam isso no começo, em que condições elas faziam, o que eles diziam, o que eles comiam, o que eles pensavam, porque eles tomavam cacete.
Candeia – Isso que você tá falando aí é o que eu considero cultura própria do sambista, que é onde se choca com “esses caras” que não têm vivência, esse conhecimento. Isso exatamente, em termos objetivos: a comida, a vestimenta, o linguajar, tudo isso faz parte dessa cultura.
PV – Mas por que acontecia isso? Que processo é esse que fez com que a escola viesse se mantendo num determinado nível, com seus valores próprios, na época considerados...
C – válidos?
PV – Não, não. Considerados coisas de marginais. A linguagem do samba, tudo o que significa essa coisa chamada samba, o cara como se veste, como ele anda, como ele come, o que ele fala, como ele dorme, as palavras que ele diz, a maneira como ele diz, o vocabulário, tudo dele, entende, né? Isso aí são marginais. Isso aí são seres marginalizados, é gente que vive... são semianalfabetos...
C – Andar com o violão antigamente embaixo do braço era coisa de marginal. Com o pandeiro então... entrava no cacete.
PV – Se você não consegue situar isso dentro da história do povo da gente, dentro da cultura brasileira, dentro da história do povo carioca, da cultura carioca, o que é isso, como é que esses caras começaram, que relação é essa que eles começaram a ter com o chamado Poder, que força eles tinham para se impor, a ponto de dizer: “Ah, já que nós não podemos acabar com esse negócio que tá aí, a gente faz o quê?” Vamos institucionalizar isso. Criando o quê? Criando desfile oficial. Agora, tem o seguinte...
C – Prestação de Serviços.
PV – Se não contar essas coisas todas, que o nome da Portela foi uma coisa imposta por um delegado de polícia, que não era esse nome, se não contar esse negócio todo, se não contar a história das escolas de samba... com detalhes, não adianta.
C – Eu sou contra. Eu sou contra.
PV – Você é contra, Candeia, mas não adianta nada. Porque realmente aquilo que já foi dito, há dez, quinze anos atrás, sabe como é que é...? Em nenhum jornal é possível fazer isso. Você vai ter que dar um quadro, um panorama atual das escolas de samba, atacar aquilo que tem que ser atacado, aquilo que tá mais em evidência, mais claro, denunciar aquilo que tá mais, sabe... isso que o Bosco tá dizendo, você chega numa escola de samba hoje, nego tá cantando. “Ô jardineira, porque estás tão triste”; samba de rádio; “tudo está no seu lugar”, e os sambas de rua não estão sendo cantados...
Carlos Elias – Nada está no seu lugar, essa é a verdade.
PV – É, os sambas enredos são escolhidos arbitrariamente, não existe democracia nas escolas, quer dizer, o povo da escola não vota, isso é que tem que ser denunciado, entende? Não existe um Conselho Fiscal que seja representativo de escola, essas coisas todas têm que ser denunciadas.
C – O sambista não tem participação ativa no samba...
PV – Participação ativa no samba. Uma escola hoje é uma coisa abstrata, quer dizer, quando uma escola deveria apesar de, aquele negócio que a gente falou na entrevista , apesar de: compromissos com turismo, e coisa e tal, apesar de ser uma coisa já infiltrada e tudo, deveria, (deve) prevalecer dentro da escola valores que são fundamentais à manutenção do samba, quer dizer: uma escola de samba o que é? Implica inclusive no seu patrimônio, na sua história, no seu patrimônio cultural, quer dizer, o que é o que é? Todos os seus elementos antigos, toda a história daquilo ali, o acervo, a maneira como se dançava, os sambas tradicionais, escola de samba.
C – Exato. Pra lhe fazer lembrar, que aí eu sou obrigado a citar...
PV – Se não disser isso tudo, não adianta, eu já tô falando há uns quinze anos, tô cansado.
C – Pra me lembrar e pra manter sempre acesas todas essas formações...
PV – Eu não consigo mais falar...
C – Pra tentar mostrar é que a criação da Quilombo tá aí. Pra tentar mostrar o que era o jongo, a capoeira, o samba de roda, o samba de caboclo, uma série de manifestações que praticamente estão em extinção, tá igual à fauna, que o homem chegou lá e depredou. Então, pra manter esse tipo de coisa, é necessário que haja uma lembrança viva, porque sem as coisas tradicionais, a coisa se perde realmente. Porque nossos filhos vão perguntar dentro de pouco tempo, nossos netos, talvez, sei lá, o que foi o sambista.
Ruy Fabiano – Memória, né?
PV – Memória, muito simples. Então, naquilo que hoje é considerado folclórico, tudo bem...
“Existe um complô armado para apagar a história do país. Pra mentir, para inventar e, toda vez que você tenta trazer à tona a verdade, vem nego e afunda”. (Paulinho da Viola)
C – Mas aí há outro detalhe...
PV - ...mas que seja, entendeu, colocando, em nível, mesmo do seu povo conhecer sua história.
C – Mas nós no Brasil, nós no Brasil...
PV – Isso já justifica o Quilombo.
C – Mas nós no Brasil, nós temos um outro detalhe, Paulinho, que nós consideramos as coisas relacionadas com a nossa cultura, até, por exemplo, na música popular, consideramos subdesenvolvidos, por exemplo, o baião, o xaxado, o carimbo, essas coisas assim, são consideradas músicas inferiores, classe C, compreende?
PV – Exato, mas...
C – Não, não é assim pra mim, pra você, mas então, essa tendência que nós temos...
PV – Tinhorão cansou de denunciar isso, hein?
F – É a mentalidade subdesenvolvida, né? A reverência às coisas que vêm de fora.
C – Exatamente. É uma tendência que faz com que...
PV – Agora, temos que denunciar as razões dessa tendência. Uma das coisas que parece evidente, meu Deus do Céu, é que parece que tem uma coisa armada, um complô armado, sempre houve nesse país, um complô para...
C – Guerra Fria?
PV – Não, não. Para apagar a história do país, rapaz. Pra apagar, pra mentir, pra contar história diferente, pra inventar coisas que não existem e toda vez que você tenta trazer à tona a verdade, vem nego e afunda.
RF – Pra reintegrar o papo: você estava falando de um livro, que livro é esse?
C – Bem, o livro é o seguinte, contém fatos... (refere-se ao livro “Escolas de Samba: árvore que esqueceu a raiz, de Candeia e Isnard Araújo, publicado pela Editora Lidador e pela Secretaria de Estado de Educação e Cultura do Rio de Janeiro, em 1978).
RF – Quem escreveu o livro?
C – O Isnard, Ivan (?) ficou mais ligado em colher depoimentos (Isnard Araújo, criador do projeto do Museu Histórico Portelense). Esse livro tem até uma historinha. Quem ia escrever esse livro era eu e o Paulinho. Mas, falta de tempo, não conseguíamos nos encontrar, e eu me liguei no Isnard pelo fato de ele ter assumido lá, e eu ter sugerido a ele fazer um levantamento do Museu da Portela. Então, aproveitando o depoimento do pessoal da Velha Guarda da Portela, sempre senti necessidade de registrar esses fatos.
RF – É a história da Portela?
C – É.
RF – Mas é uma abordagem sociológica?
C – Aí é que vêm os detalhes. O livro, a princípio, era apenas um levantamento histórico da Portela.
RF – Memória da Portela.
C – É, memórias da Portela, mas a coisa se tornou tão profunda, o entusiasmo da gente foi tão grande, que não começamos a expandir todos os fatos com relação ao samba, basicamente a história da Portela. Mas não está preso unicamente à Portela, entendeu?
RF – Partindo da Portela, abordagens mais amplas, né?
C – Perfeitamente. Agora, com fatos, inclusive procurando evitar isso que o Paulinho falou aí: ser mais um livro estatístico, nesse aspecto, não. Pelo menos, eu estou contando aquilo que eu sinto, dando minha opinião, dando meu depoimento com relação a coisa que assisti, daquilo que eu vivi na minha vida de samba.
RF – Visto de dentro, então!
C – Perfeitamente. Sem pretensão literária, que nós não temos nem condições, apenas fazendo um trabalho que via servir, com toda a humildade, como um documento.
RF – Esse livro já tá pronto?
C – Já.
RF – Vão lançá-lo quando?
D – Deve ser lançado no final deste mês.
RF – Legal.
C – Sim. E vai por aí afora. Ele é um pouco crítico, mas também contém fatos relativos à Portela, tem muita coisa interessante. Muita gente não sabe, por exemplo, que o próprio Estácio mesmo, o próprio Ismael Silva participava do que ele chamava: “Vou na Roça”. Roça era Oswaldo Cruz, apenas o Estácio teve o privilégio de ter sido oficialmente registrado primeiro, mas o movimento de sambistas, é da mesma época.
RF – O Estácio era mais centralizado.
C – É, mais centralizado...
PV – Mas o pessoal antigo, ó Candeia...
C – Não, não tiramos o mérito de...
PV – O pessoal antigo sempre falou que quem trouxe o samba foi o pessoal do Estácio.
C – Perfeito, eles participavam com o Paulo da Portela, inclusive com o caso do seu Napoleão, que era jongueiro, era negócio de jongo, cruzado na linha das almas, tinha que pedir licença na hora da entrada. Tinha uma irmã do falecido Natal, que ia com o seu Napoleão, que morava ali pra baixo (Dona Benedita morava na rua Maia Lacerda, no Estácio), que freqüentava a casa das baianas (Tia Ciata, Bebiana e outras) ali na Praça Onze, e tal, aquele negócio todo.
PV – Olha, isso não vem ao caso, mas a Portela é cruzada na linha das almas. Descobri isso por acaso.
C – Cruzada na linha das almas não, a Portela tem como madrinha, é batizada por uma yalorixá africana. É a única Escola de Samba que foi batizada por uma yalorixá africana, Dona Neném, entendeu?
PV – Esse aspecto de escola de samba é uma coisa que nunca foi falado. Esse aspecto que é um outro lado do negócio, isto é, não sai numa matéria, isso dá muito trabalho, tem que estudar...
C – Ah, mas também não vou vender meu peixe todo pra vocês, senão vocês vão publicar antes do meu livro, vão esvaziar meu conteúdo (risada). Então, vocês compram o livro e depois copiam aí. Foi um trabalho de pesquisa muito grande, rapaz, não foi mole fazer não. Tive de levantar muita gente aí. Seu Caetano. Olha, queres ver uma polêmica? Já começa por aí. Nós não tiramos seu mérito, não ferimos todo o lado positivo de contribuição que ele deu à Portela, mas abordamos o assunto com clareza, de uma tal maneira, porque são testemunhos de pessoas que ainda estão vivas e que negam que Natal foi esse mito, pelo menos que dizem que foi. O fundador, isto e aquilo...
PV – Não foi bem isso. Mas não foi mesmo...
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No próximo bloco:
Candeia e Paulinho da Viola comentam a exploração da figura de Natal em detrimento do que denominam a “minoria autêntica” da Portela. E mais: sobre o montante que se gasta em disputas de samba, a Bienal do Samba de 1969, eleições, prestação de contas...
2a. Parte
PV – Atualmente, eles estão explorando o nome, a figura do falecido Natal para tudo, entendeu como é que é o negócio? Fizeram do Natal uma espécie de bandeira e tão explorando esse mito até hoje. Tem coisas realmente inexplicáveis. Mas isso a gente não vai dizer, porque nós não tamos aí pra denegrir a imagem de um homem já falecido e que o saldo dele foi positivo. Ninguém tira o mérito dele não. O saldo dele é realmente muito positivo em termos de samba, mas também não é o que exploram por aí, que falam, não chega a ser mesmo. Acima dele existem pessoas, vamos dizer, em relação à Portela, que foram muito mais importantes para a Portela e que não tiveram a notoriedade que alcançou o Natal. Como o Caetano, como o Rufino, o Paulo da Portela.
RF – Ele era uma figura especial, independente de tudo.
PV – Bem, mas o que tem a ser dito para os sambistas...
C – Coisas diretas...
PV – Sambistas: vocês precisam tomar consciência com relação ao que está acontecendo, porque o que está acontecendo é o seguinte, todo sambista tem que tomar conhecimento do que está acontecendo, todo sambista, quer dizer, todos aqueles caras que têm realmente um vínculo, ligados à escola, tudo aquilo que tem sido feito até hoje com relação às escolas é um negócio que precisa ser esclarecido, precisa ser discutido, como estamos discutindo aqui. É que parece que existe um complô, a impressão que se tem é que tudo que existe nos ambientes todos de escola de samba, é sempre no sentido de apagar uma memória, rapaz, apagar no sentido assim de dizer: “O passado foi uma coisa que morreu”.
C – Eu sei. Deixa eu fazer uma referência, Paulinho. Por que você não fala da minoria dos autênticos? Quer dizer, a minoria dos autênticos é o tipo de...
RF – Isso tem outro motivo, né, quer dizer...
Carlos Elias – Tradição já era!
C – É a frase deles. Agora, uma coisa que você é culpado. Paulinho, eu queria que você conversasse com o Isnard: o Hiram tá explorando aquela entrevista que você deu naquela ocasião (73), até hoje...
PV – Não está.
C – Não está?
PV – Não tá. Eu li o que ele falou a meu respeito. Que em 68 eu...
C – Não, você não tá me entendendo, ele não está explorando porque ele declarou isso. Ele apenas cita isso, ele diz: “eu tô falando como tradicionalista e tal...”
PV – Posso falar que o Hiram... aquilo ali, rapaz, eu voltei a falar nessa entrevista, não adianta ele explorar, porque eu voltei a falar o seguinte: apesar do compromisso existente hoje, das escolas com o turismo, com não sei o quê, porque nós não podemos realmente imaginar uma comunidade fechada, isolada, não sei de quê, “patati patatá”, tudo isso que já falamos há cinqüenta anos, o samba, mantém, é necessário para ser samba, manter certos valores fundamentais dele, senão desvirtua tudo, então isso ficou muito claro, quer dizer, não tem, não pode explorar nada. Eu não quis justificar a situação atual, pelo contrário, eu disse que apesar dessa loucura toda, é necessário ter certos valores que façam com que aquilo tenha um peso realmente verdadeiro e não essa coisa falsa, rala, artificial, que já é a substituição desses valores, sabe como é que é, posso enumerar aqui, pô!
RF – Padroniza algumas coisas...
PV – Claro.
C- Certo, Paulinho. Agora, uma coisa que era muito importante, não parece nada, mas que tem que ser dito alto e bom som, é de que, eu sei que é teu pensamento também, falo por você, no caso, de que toda a nossa luta, todo nosso trabalho, pra não ser confundido, nós não temos nenhum interesse político, não pretendemos ser diretor da Portela, nós falamos como sambistas, pelo que vivemos, certo? Quer dizer, por trás de nossa posição, não existe nada a ser escondido. Não tenho pretensão, não quero ser diretor, não quero ser tesoureiro, não quero honraria, não quero receber nada assim pra mim. Com toda sinceridade, mal comparando, não vou dar uma de Pelé, cruzar os braços e dizer que tá tudo bom, uma democracia bonita, e tal, igualdade, tudo jóia, certo? Dar uma de Pelé e deixar o barco pegar fogo. Então, nosso trabalho, é claro, não estamos lutando em honra própria, mas e até por aqueles que não têm condições de falar, eu às vezes até chamava a atenção do Paulinho e dizia: “Olha, Paulinho, você tem, quer queira, quer não, uma posição de liderança perante esse pessoal, eles esperam que você... tem que chegar e falar, porque a gente tem realmente que falar. Agora, pra mim, é até uma satisfação que você Paulinho esteja mais entusiasmado que eu. Eu que já tô me sentindo um pouco desgastado cansado de estar brigando aí, e você vem essa: “Não, nós temos que falar, temos que... sei lá”. Eu confesso a você que até me surpreendeu essa tua atitude agora, viu, malandro?
PV – É isso que... não, rapaz, peraí...
C – Não, não que eu esteja negando as coisas que você faz não, você não modificou nada, não, mas é uma posição realmente assim, mais, assim...
PV – Mais ativa, mais ativa...
C – Mais ativa, é isso, vamos dizer assim. Não é que você fosse um omisso diante da situação não, mas é que realmente...
CE – Chegou uma hora que a coisa... a gente fica naquela de achar que vai melhorar...
C – Ah, exato, exato, positivo. Eu esperava que chegasse ao ponto que chegou. Você nunca esperava talvez, Paulinho saber que...
PV – Não tô fazendo defesa de coisa nenhuma. Tô querendo dizer o seguinte: é só pegar as entrevistas que eu já entreguei na mão de vocês, que nós fizemos naquele quadrado, eu, você, Elton e Martinho.
C – Perfeito, perfeito.
PV - ...e a que eu dei pro Torquato, pô, cansei, e ainda deve ter mais lá em casa, em...
C – Mas hoje você fala com um tom de objetividade que talvez não falasse com tanta clareza.
PV – Ó, eu já assumi coisas assim, por exemplo, a revista Homem queria que eu fizesse uma matéria sobre... é aquele negócio que a gente não sabe. Eu, rapaz, não tô a fim mais de fazer coisas, entende, como a gente vem fazendo até hoje, Candeia, de dar entrevistas como Quixotes, sabe como é que é? Sabe, querendo... não tem sentido. O que nós temos que fazer hoje é realmente armar um time contra isso que tá aí, mas um time assim, quer dizer, o Quilombo tá lá, ele vai sair, ele vai fazer... Não tem que colocar o Quilombo contra nada, sabe. Com a antítese não sei de quê, nada disso. Nós temos que colocar o Quilombo como uma coisa a ser construída, como uma alternativa, mas não precisa colocar como antítese. Outra coisa: o que nós temos que fazer é chamar na responsabilidade uma porção de gente que vive falando de escola de samba há uma porrada de tempo... ô desculpe! Não sabia que tinha mais gente aí...
C – Não, não tem nada não, isso é até o palavrão mais bonito que se diz por aqui.
PV – Sabe o que é? É que a gente fica sem querer assumir uma posição mesmo de luta, de todo mundo na luta. Não adianta mais um jornalista escrever um negocinho, não adianta. Tem que fechar todo mundo numa coisa só, discutir o assunto profundamente, como já foi feito há muitos anos atrás, negócio de seminário de samba, simpósio que teve em 69, que nós temos tudo isso lá registrado e tudo, e fazer outro, num outro nível, quer dizer, aquilo de 69 foi feito só pra “acoxambrar tudo”, acomodar, tinham as teses, e tudo ficou lá. O que tem de ser feito hoje é negócio pra sair um documento definitivo sobre escola de samba. Mas uma coisa definitiva, assim, levantamento de tudo, histórico, chamar todo mundo que teve realmente, palavra e peso dentro dessa história toda, trazer o depoimento dessa gente, fazer, se possível, até um livro, que uma coisa dessas...
C – Com essa profundidade toda, só um livro.
PV – Eu acho que não precisa ser exatamente um livro. Pode ser numa linguagem jornalística, mas pode ser um documento muito importante, porque aí, esgota isso, sabe como é que é, senão a gente vai passar a vida inteira naquele negócio que eu te falei: todo ano antes do carnaval tem um cara perguntando: “O que você está achando, como era antigamente? Hoje tem muita pluma, botaram não sei o quê.” Muitas entrevistas que nós demos já se perderam, muita coisa já se perdeu, que não é de hoje isso, é desde aquele tempo, pó, entende? Sei lá. Então, isso aí eu acho que tem que ser denunciado sempre, mas não nesse nível em que as coisas ficam abstratas, sabe? Olha, o crioulo de escola de samba ficou por baixo, o sambista não sei de quê, o sambeiro não sei de onde, a classe média... não, nada disso. Isso aí já era. O que tem de ser colocado é isso: fazer um levantamento mesmo, sério, das escolas de samba. O seu comportamento atual, das suas relações internas, de como se vota numa escola, em que situação está o povo, realmente, da escola, se está votando ou não, quem decide, como é que se decide, como é escolhido o samba-enredo, sabe como é que é? Que interesses tem por trás disso, quanto se fatura, onde vai esse dinheiro, essas coisas todas, pô!
No próximo bloco: Candeia e Paulinho falam sobre disputa de samba-enredo e o papel do ex-diretor cultural da Portela (atual assessor da LIESA e diretor do Centro de Memória do Carnaval da mesma entidade) Hiram Araújo, a descaracterização das comissões de frente e turismo sexual.
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3a. Parte
Carlos Elias – Quanto se gasta pra tentar ganhar um samba-enredo? Essa dupla gastou cerca de 70 mil cruzeiros, o Norival Reis e o parceiro dele gastaram quase 40...
Paulinho da Viola – Isso aí, não somos nós que estamos dizendo, foi o próprio Hiram mesmo que disse nos jornais. Hoje em dia tá todo mundo aí pra faturar, quer dizer, o cara assume essa. O cara que tá dirigindo uma escola de samba, ele não pode fazer isso, Candeia. O cara que dirige, que tá fazendo o carnaval, assume o seguinte: “Tá todo mundo aí para faturar mesmo”. Tá nos jornais, pô! Não dá mais pra desmentir.
C – Olha só, outra bobagem que o Hiram falou. Olha a inversão de valores: que a escola está perdendo estes anos por culpa nossa (a Portela não ganhava desde 1970), os tradicionalistas.
PV – Porque estamos de fora?
C – É, não sei, não entendi.
Ruy Fabiano – Dentro do processo deles.
C – É, nós tradicionalistas é que somos culpados.
PV – Nós tamos aí dentro, rapaz. Nós fomos chamados este ano, como já disse na entrevista, me recusei a fazer samba-enredo...
C – Uma bandalheira o que ele falou. Ele inverteu tudo, presta atenção, inverteu...
RF – Ele quer dizer o seguinte: o fato de vocês não compactuarem com eles só trava o processo que eles querem implantar dentro da escola.
C - Mas, como compactuar? Olha, vamos fazer uma análise rápida, pra depois o Paulinho falar, que ele é mais objetivo. Olha como é difícil, no clima atual o processo que eles criaram, tá difícil. Eu respondo por mim. Por exemplo, ter que corromper bateria pra colocar meu samba, eu tenho que pagar, pra adquirir simpatia, porque senão eles boicotam mesmo. Porque o clima atual é em relação ao dinheiro. Tem que ter torcida organizada, levando gente de fora da escola, tem que reunir, por exemplo um grupo do bairro em que eu moro, ensaiar aqui, de tarde, e levá-los em caravana, de ônibus, o cara vai pra curtir um choppinho...
Carlos Elias – Pagar ingresso de todos eles na porta...
C – É, tem que investir nisso tudo, pra poder competir dentro da escola, com a minha torcida, aquela facção, senão eu vou pegar no microfone, vou cantar sozinho, ninguém vai cantar comigo.
PV – O que tem de ser denunciado é o seguinte: dinheiro, sabe como é, dinheiro, a própria corrupção, ela sustenta a mentira durante até muito tempo, isso já foi dito, de outra forma, tô parafraseando aí, mas não vai sustentar durante todo o tempo, porque essa droga vai ruir, rapaz. Não tenha ilusão, vai ruir, as pessoas vão começar a perceber...
C – Eles tão com o poder na mão. Paulinho fala em termos objetivos. Pra mim, beleza... eles não vêem beleza naquilo que eu vejo. Eles não vêem graça na Neuma, na Maria Joana do Império Serrano, na Tia Vicentina, na Tia Clementina, certo? Eles não vêem beleza nesse pessoal. A beleza que eles querem ver é a da estética daquela mulher seminua, daqueles quadris bonitos, quer dizer, um negócio onde a minha posição em relação à deles já está completamente distanciada. A nossa posição está completamente distanciada.
PV – Ninguém tem nada contra essa mulher, seminua, é que...
C – Não, eu gosto...
PV – O problema é isso, não tem nada a ver, mulher pelada sambando.
C – É gostoso, é bonito, toda mulher de corpo bonito é interessante. Até uma outra mulher é a primeira a reconhecer a beleza daquela. Acho que a coisa tá sendo configurada de uma maneira, tá sendo colocada no lugar das coisas fundamentais, com relação ao samba.
CE – Substituição da comissão de frente.
C – A comissão de frente, por quê? Porque comissão de frente são aqueles coroas da antiga, e que até não podiam mais sambar, tavam naquela de prestar um serviço à escola, era um negócio de manter aquela dignidade do sambista e tal. Isso foi substituído por mulheres jovens, exuberantes, lindas. É isso. Então, esse processo, entra por quê? Pra agradar o chamado mercado de consumo, agradar o turismo. A imagem do nosso carnaval não está sendo vendida corretamente, porque o carnaval é uma festa que devia ser vendida como integração do povo, quer dizer, o patrão e o empregado desfilando na mesma escola...
PV – Você se engana. Ela está sendo vendida corretamente, porque ela está, você usou bem o termo, quer dizer, sendo vendida. Então, corretamente, por quê? Porque os caras querem isso mesmo. A gente, você já cansou de ver anúncio, assim, não tô falando que o turismo fez isso, entende, mas a gente já cansou até de anúncio. Eu já vi um anúncio do Haiti, para Executivos, que era uma mulher seminua, sabe, com o seio de fora, sabe, era um convite para negócios pro Haiti e pra ser lá, pra uma ilha dessas, Havaí, não sei onde é que é. Era uma mulher com o seio de fora, entendeu? Eu já vi declaração de nego, aqui, de autoridades aí, dizer que o que nós temos que vender mesmo é mulher pelada, e que nós temos que vender mulher, futebol, samba, essas coisas todas. Que isso é que nós temos que vender. Turismo daqui, não pode vender outra coisa. Quer dizer, existem essas implicações, que precisam ser analisadas, entende? O que eu sinto é isso. O que tem de ser denunciado, rapaz, é essa coisa arbitrária, que vem de cima pra baixo, dentro de uma escola de samba. Quer dizer, um cara se arvorar e dizer: EU mudo o samba-enredo, EU decido o que é isso, EU faço isso, EU faço aquilo, ou então vira um outro e diz: “quem não estiver satisfeito vá para a arquibancada”. É isso que tem que ser denunciado, quer dizer, nenhuma escola de samba...
C – Brasil, ame-o ou deixe-o...?
PV – Não... é o cara chegar e dizer: olha aqui, quem não estiver satisfeito que vá pra arquibancada. Isso aí...
C – É uma coisa altamente fascista.
PV – Então, isso aí é que ... eu acho que... Quer uma sugestão para matéria? Abre a matéria assim: “QUEM NÃO ESTIVER SATISFEITO VÁ PRA ARQUIBANCADA”. Ou “O SAMBISTA QUE NÃO ESTIVER SATISFEITO VÁ RECLAMAR NA ARQUIBANCADA”. Pronto, é assim que a gente tem que abrir a matéria.
No próximo bloco: Discute-se o papel do cenógrafo e ex-carnavalesco Fernando Pamplona, do cartunista Lan e do ex-dirigente Nelson de Andrade nesse processo, a “traição” em torno do enredo Ilu-Ayê, de 1972.
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