Brigas e prisões
Natal contava as histórias desse tempo, muitas vezes carregadas de violência, com um surpreendente espírito esportivo. Certa vez, depois de comandar uma surra a dois soldados da antiga polícia especial, foi preso e recebido na delegacia com tanta gentileza que teve de passar quinze dias alimentando-se de suco em canudinho, pois não podia abrir a boca.
- "Tinha um tal de Moacir, um f... da p... que tinha um braço desse tamanho. Ele me batia, me levantava e perguntava: Você que é o valente? Eu já não podia falar. Só fazia hum-hum e balançava a cabeça e ele de novo pou e me levantava e perguntava: Você que é o valente?"
Em outra ocasião Natal foi colocado numa cela com um louco furioso armado de porrete. O louco saiu atrás dele. Natal corria em volta da cela e o louco atrás:
- "Corri umas quatro horas. Meu coração quase estourou. A sorte foi que ele era tão doido que só corria dando volta."
Há também um longo capítulo dedicado às brigas estritamente carnavalescas. Como no dia em que subiu a Serrinha, reduto do Império Serrano, com um caixão para celebrar o enterro da escola rival. Ou no ano em que, para provar sua tese de que o concurso de escola de samba é uma "safadeza", como ele dizia, não deixou que abrissem o envelope lacrado onde estavam as notas dadas a sua escola. Disse na cara do Secretário de Turismo que ele já sabia de véspera que a Portela ficaria em quarto lugar. E saiu no tapa indiscriminadamente. O envelope só foi aberto depois que Natal foi retirado do recinto com ferimentos generalizados. A Portela estava em quarto lugar. Mesmo quando falava de suas passagens pela Ilha Grande era capaz de deixar escapar uma frase como "eu até gostava da colônia".
O humor, o caráter quase de molecagem que ele dava a esses episódios, desaparecia, porém, quando falava do homem que matou. Como sempre acontecia quando ficava tenso, a mão esquerda de Natal começava a bater no ombro direito. Dava a impressão de que procurava o braço inexistente. Era capaz de falar no assunto vinte minutos seguidos, sério, o braço indo e voltando, indo e voltando.
Era um empregado de Natal, um tal de Davi, prestigiado por ele, a ponto de se transformar numa espécie de sócio. Mas sempre ofendia Natal pelas costas. "Me chamava de negro, dizia que tinha nojo de mim". Natal não podia brigar com Davi no tapa. Além de ter dois braços, era faixa preta de judô. Durante uma discussão em que as ofensas se tornaram fortes demais, Natal usou seu revólver. Mas atirou apenas quando David avançou para arrebatar-lhe a arma. Foram três tiros até ele ficar, como diz Natal, "anestesiado". E completa: "ele era um touro. Estava morrendo e ainda esticava o braço e passava a mão em mim". O crime aconteceu às 6 da tarde de um sábado, numa rua movimentada de Madureira, mas a polícia não encontrou ninguém disposto a testemunhar contra Natal. Ele passou quatro meses preso, até ser marcado o julgamento. Como seus advogados lhes garantissem que seria absolvido, recusou-se a comparecer ao tribunal. "Eu mataria o Davi cem vezes. Mas quatro meses na cadeia era pouco pela vida de um homem". Só consentiu a ir a júri cinco meses mais tarde. Foi absolvido por sete a zero.
O futebol
Exceto pelo episódio da morte de Davi, que perceptivelmente provocava nele uma espécie de angústia, Natal da Portela, em que pese algumas cicatrizes no corpo, dava a impressão de ter a consciência sem culpas ou ressentimentos. "Mesmo meus inimigos são meus amigos", costumava dizer. Só parecia ficar realmente magoado quando falava de sua inevitável incursão pelo futebol. Ele era rico, poderoso, gostava de jogar bola - "até os 45 anos botava uma goma de zagueiro" - e torcia pelo Fluminense. O Madureira Futebol Clube, tricolor como o Fluminense, esteve diante do presidente ideal. Com o Madureira, Natal percorreu 56 países. Chegou à China, numa excursão quase tão épica como as viagens de Marco Pólo. Sem notícias dos intrépidos futebolistas de Natal, os jornais da época chegaram a afirmar que o Madureira havia se extraviado em alguma província chinesa e desaparecido para sempre.
A lembrança mais forte que esse curioso exemplar do capitalismo latino-americano trouxe do oriente misterioso foi entretanto a de um café com leite tomado em Macau depois de duas semanas de tentativas infrutíferas de comer algo decente.
Em algum lugar perto da Itália - Natal evidentemente não era muito forte em Geografia - a delegação do Madureira foi homenageada por um príncipe - seria o Rainier de Mônaco? - com uma festa magnífica. Quando lembrava dessa homenagem dava risada: "Se ele soubesse quem eu era mandavam eu e o Madureira é pra Calábria".
Presenteou o Madureira com uma piscina olímpica e um ginásio. Quando deixou a presidência, a diretoria do Madureira levou até sua casa 48 000 cruzeiros em promissórias que o clube devia a Natal e ele deixara na sede. Ele disse apenas: "Rasga essa m...".
- No dia seguinte Natal comprou o jornal e viu a manchete: "Novo Madureira - Botemos os ladrões para fora". Passava na porta do Madureira porque era rua. Mas não olhava para dentro.
Quanto a príncipes, Natal já apertou as mãos do "Phillips", da Duquesa de Kent, que ele chama de "rainha", da rainha propriamente dita e de um que ele não sabe o nome (era o Rei de Luxemburgo), quando esteve visitando a Portela. Quanto a viagens, esteve ainda na Argentina e Bolívia. Foi de carro com "Niterói" no volante. E comete uma "gaffe" zoológica surpreendente para quem lidou tanto tempo com os bichos: "Na Bolívia eu quis atravessar uma serra que tem lá, uam tal de Serra dos Andes. Mas me disseram que na serra tinha leão, elefantes, e eu desisti".
O Edifício residência
Na casa de Natal, porém, seus bichos mais familiares foram homenageados com uma espécie de mural que dominava todo o andar térreo - um jardim de inverno com uma profusão enorme de folhagens - onde o "Pajé" costumava sentar-se numa cadeira de vime para conversar sobre negócios. O mural, num estilo que poderia ser definido como realista-infantil, foi obra de um ex-carnavalesco da Portela. Foi muito criticado por alguns amigos de Natal, não tanto do ponto de vista estético, mas político. Natal, porém foi irredutível.
-"Se eu fosse dentista, botava aí umas dentaduras. Eu botei os bichos, do avestruz à vaca".
Como na sua própria vida, os bichos são apenas um detalhe na casa de Natal. No pequeno edifício que ele mesmo projetou, diz que gastou "uns 300 milhões". Um inventário do que acumulou naqueles quatro andares mostraria por exemplo um retrato oficial de Getúlio Vargas colocado quase ao lado do painel dos bichos (havia uma foto de João Goulart junto com o próprio Natal, mas foi retirada: "se eu fico mostrando vão dizer que sou subversivo"). Gravuras japonesas, vasos de murano, um piano, um pássaro de penas brancas, possivelmente empalhado e aplicado com alto-relevo num quadro, um sarraceno de olhar maroto seqüestrando uma odalisca num tapete colocado numa das paredes, outro tapete com o Príncipe Encantado e A Bela Adormecida - ou será uma cena de Otelo? - povoavam a sala de estar do segundo andar. Uma trepadeira pintada subia pelas escadas, acompanhando o corrimão. Um pinocchio desenhado num corredor. Uma paisagem emoldurada, pendurada de cabeça para baixo, noutro. Um banheiro onde cada objeto era femininamente revestido de plástico cor-de-rosa. Outro fechado há anos porque apresentou um vazamento e Natal não confiava em gente que conserta coisas. A geladeira, colocada ao lado do bar no hall dos bichos, por exemplo, não funcionava há muito tempo. "Veio o homem aí, levou o estômago dela e nunca mais voltou", dizia Natal. Duas das três televisões da casa também estavam sem "estômago". Nesse inventário, devia-se ainda ressaltar a piscina abandonada do último andar, onde foram gastos 17 toneladas de ferro na construção.
A Herança
Qual seria a herança deixada por Natal da Portela? As investigações para apurar enriquecimento ilícito dos bicheiros cariocas, enquadrados no ato 5 no final de 1968 mostraram, que sua lendária fortuna - seria dono de centenas de lojas, de um cinema, de uma empresa funerária e de vultosos depósitos em bancos suíços - não passava de dívidas nos bancos lá mesmo de Madureira. "Tudo que ganhei distribuí por aí".
De qualquer forma, para seus filhos - o mais velho era técnico em hematologia e dono do banco de sangue de Madureira, dois eram universitários e a mais velha era casada com um oficial da Aeronáutica e mora em Brasília - seria inviável seguir qualquer atividade do pai.
Osmarzinho, o hematologista, chegou a ser vice-presidente da Portela, mas nem ele, nem ninguém em Madureira tinha autoridade para esbravejar durante as reuniões da diretoria da escola como sempre fez Natal. Ali mesmo, da calçada do bar de Nozinho, a 200 metros de distância, quando o vento sopra dos lados de Oswaldo Cruz, era possível ouvir seus berros.
No início dos anos 70, a Portela passou a ter uma vida econômica independente graças aos ingressos cobrados nos ensaios pré-carnavalescos - cerca de 30 milhões de arrecadação por semana -, e diziam que do velho Natal teria apenas a águia de sua bandeira. O que, evidentemente, também era um exagero. Como dizia "Mano" Décio da Viola, compositor do Império Serrano mas grande amigo de Natal, "enquanto ele viver, a Portela precisa de Natal".
- E depois?
- "Depois, será o maior enterro já visto em Madureira".